quarta-feira, março 06, 2013

Pune - Diário de Bordo - Dia 13


Mais um dia que passa, e agora já começo a sentir a contagem decrescente para o meu regresso. Estou dividido algures no meio do prazer que tenho sentido em estar aqui, a fazer aquilo que tenho feito (apesar de todas as dificuldades que sinto diariamente, e que traduzem um pouco o que a equipa passa por aqui), em conhecer as pessoas que conheci, e a saudade enorme que tenho de casa, dos meus amigos e sobretudo da minha família. Por um lado gostava de ficar mais algum tempo, poder ajudar e participar em algo cujo resultado do nosso esforço é visível, palpável. Por outro lado estou já mentalizado para rever as pessoas que mais gosto em breve, e egoisticamente não me apetece abdicar disso. Por mais interessante ou fascinante que seja um país como este, seja lá porque motivo for, a sensação de voltar a casa é sempre muito boa (pelo menos para mim).

Não há um dia que passe que não veja uma pequena coisa que me desperte a atenção. O próprio percurso para o trabalho que tantas vezes amaldiçoei antecipadamente e sem conhecimento de causa, antes de vir para cá, por saber que representaria uma larga fatia do meu tempo, revela-se uma descoberta de rostos, pessoas, costumes, dificuldades, etc. Não deixo de me admirar quando vejo as pessoas a dirigirem-se ao único sítio num espaço de hectares, onde existe água potável, para se abastecerem eventualmente para o dia inteiro. Não deixo de me admirar quando vejo uma mãe ou um pai dar banho ao seu filho pequeno numa bacia, à porta de sua casa. Não deixo de me admirar com as crianças a brincarem alegremente descalças e esfarrapadas, no meio da rua. Não deixo de me admirar com este país tão diferente, com tantos problemas e dificuldades, em que aparentemente as pessoas não teriam grande motivo para serem felizes, mas onde paradigmaticamente enfrentam o dia com um sorriso no rosto e com a determinação de quem segue algum caminho (não sei bem qual, nem se eles próprios sabem).

Nas conversas que tenho, as mais simples e pequenas coisas ou costumes e tradições, são as maiores diferenças possíveis entre culturas. Hoje, por exemplo, o prestável Sayant começou a falar da família dele, e a certa altura perguntou-me se o meu casamento tinha sido "arranjado". Respondi-lhe que não, e quando lhe disse que em Portugal actualmente isso já não existia, olhou-me como se fosse um extra terrestre. Na Índia hoje em dia cerca de 80% dos casamentos ainda são arranjados pelos pais, tal como foi o caso dele. O que é certo é que quem o houve falar, não detecta qualquer ressentimento ou problema em relação a isso, e fica com a sensação de que gosta realmente da mulher. Durante a viagem de regresso estava todo satisfeito porque lhe ia fazer uma surpresa: como ela tinha o telemóvel avariado, comprou-lhe um novo que fez questão de me mostrar. Era do tamanho de um porta-chaves, mas segundo ele tinha todas as funcionalidades possíveis e imaginárias, pelo que ela ficaria muito contente. A sensação que tenho é que aqui ainda se vive muito das pequenas coisas, e como disse uma vez Pepe Mujica, presidente do Uruguai: "pobre não é aquele que tem pouco, mas sim aquele que necessita infinitamente muito". Não estou no Uruguai, mas na Índia esta máxima parece-me mais do que aplicável.

4 comentários:

mcaa disse...

Acredito que estejas realmente a ter uma experiência fascinante e até que daqui para a frente vejas algumas coisas do teu dia a dia de maneira diferente.
Um bom dia de trabalho e sem grandes aventuras.
Um grande beijinho da mãe

carekaPT disse...

Sábias palavras do Mujica...às vezes dou por mim a congratular-me por atingir a felicidade com 'tão pouco'...há uns tempos, quando o assunto era vinhos e castas, um entendido a tentar apanhar-me na curva perguntou-me qual tinha sido o melhor vinho que tinha bebido...a resposta de tão rápida até parecia estudada para a ocasião, mas só aconteceu porque tinha bebido aquele vinho há poucos dias atrás...uma garrafa de vinho branco Fonte do Nico, comprada no Modelo por menos de 2€...perguntou-me logo "Porquê?" - a resposta foi: "bebia com alguns dos meus melhores amigos!"

Meditemos. :)

ACCM disse...

Acho que tudo é relativo: quando as pessoas vivem desde que nascem com o que está ao seu dispôr, nem sequer se apercebem do que há para além disso... (salvo uma ou outra excepção); penso que essa é a mensagem subjacente à imagem bíblica da proibição de comer da árvore do conhecimento: O que desconhecemos não nos torna infelizes! Também no nosso país há décadas atrás, as pessoas eram felizes na sua pobreza, porque (ainda que com outro nome) reconheciam as castas existentes, fosse por medo, fosse por respeito, estando as classes sociais bem definidas, com as responsabilidades e as regalias inerentes a cada grupo social, ainda que para uns fosse o dever de trabalhar e produzir e para outros o direito de usufruir da riqueza que os primeiros produziam. Com a democracia, isso acabou, e todos nos achamos iguais, exigindo usufruir dos mesmos direitos e regalias. Liberdade, igualdade e fraternidade, foram conceitos estabelecidos pela Revolução Francesa, mas mesmo nessa época resultou apenas para alguns... em termos económicos; o Zé povinho fica muito satisfeito por por "lhe ser concedido" o direito de não ser punido ao dizer o que bem lhe vier à cabeça, mas a verdade é que há sempre um grupo àparte que beneficia de melhor alimentação, melhor assistência à saúde, melhor acesso à educação, maiores extravagâncias no lazer... Segundo creio, apesar de vivermos no século XXI, na Índia o sistema de castas está profundamente arreigado, daí cada um saber o lugar que ocupa na sociedade, sem ambicionar a mais do que o que lhe é socialmente concedido e permitido. Não sei mesmo se é possível a alguém ascender a uma casta "superior" à sua, melhorando as condições em que possa viver. Creio que, se o indivíduo quebrar as regras da casta a que pertence, passa a ser considerado um pária (palavra que julgo ser a raíz de "parasita").!
A verdade é que se nós estivéssemos inseridos nas culturas de países como a Índia e outros semelhantes ou até com vivências bem piores (aos nossos olhos), acharíamos natural a forma como neles se vive. Só achamos chocande porque já ascendemos a um patamar superior.
Mudando de assunto: Estes teus posts, para além do mais, dariam para largas dissertações sociológicas, filosóficas e culturais, pelo que é pena que os teus leitores não queiram fazer uso do teclado deixando os seus comentários de forma a enriquecerem ainda mais este teu diário de viagem...
Nós por cá, cá te esperamos.
Beijinhos
Pai

Marco disse...

mcaa: verdade... por exemplo: nunca mais vou olhar para uma torneira aberta sem necessidade, da mesma forma.

careka: ora aí está o princípio da coisa... saber valorizar o que merece ser valorizado, e em última instância, beber uns canecos!

accm: tens de convir que essa perspectiva, não deixando de ser fundamentada, é um bocado académica e empírica... acho que na prática as coisas não são assim tão lineares nem tão preto ou branco. estão algures no meio, nos tons de cinzento. mas como dizes, isto daria uma larga dissertação. :)