domingo, dezembro 18, 2016

Meia Hora Atrasado

Nunca me esquecerei que no teu dia, no dia da Imaculada Conceição, no dia em que decidiste finalmente descansar, cheguei meia hora atrasado. Os 20 quilómetros que nos separavam, no momento em que recebi a notícia, ainda tornaram a mesma mais dolorosa. O murro violento mesmo no meio do peito, que me retirou a respiração e os sentidos durante instantes, não terá sido nada comparado com aquilo que o teu companheiro de uma vida inteira sentiu, quando ali mesmo o olhei nos olhos e lhe disse que tinha recebido um telefonema... Aqueles 20 quilómetros foram os mais longos e demorados de sempre que percorri. Pela primeira vez na vida senti que me dirigia em direção ao vazio, ao nada... mas continuava a caminhar como aqueles que percorriam o mesmo caminho que eu, e que tal como eu chegaram meia hora atrasados, até nos unirmos e deixarmos o nosso mundo desabar em conjunto, nos abraços, lágrimas e ombros uns dos outros. E assim o fizemos. Chorando e desabando à vez, enquanto a multidão que ali passava naquela porta de hospital, estupefacta, observava. Lá nos fomos apoiando, outras vezes isolando, até recuperarmos a respiração e os sentidos. Recordo o desespero de ver os outros desesperados, e sobretudo de o ver a ele, incrédulo, sem norte. A angústia de ver os outros angustiados, a incapacidade de preencher o vazio.
Porque é que não esperaste apenas meia hora mais? Porque é que não nos deixaste ter a oportunidade de te dar vida com a nossa presença? Porque é que não estavas em condições para te podermos telefonar? Porque é que não nos deste um pré-aviso do que se iria passar? Porque é que não aguentaste apenas mais uns dias... mais um Natal? E sobretudo porque raio é que não podias viver para sempre? Porque é que não podias ser para sempre, aquele refúgio forte, quente e macio da minha meninice? Aquele colo bom? Aquela voz melódica a cantar as cantigas do antigamente? E porque é que não voltas? Porquê??? PORQUÊ???
Lembro-me de engolir em seco, enxugar as lágrimas, pegar no telefone e começar a tratar de coisas. Lembro-me de pensar nos outros, porque seria o que tu querias que eu fizesse. Eu, o teu netinho. Porque a vida é um ciclo. Foste para mim. É apenas justo que seja para ti ou por ti, e isso nunca será suficiente. Não foi suficiente. Mas foi duro, muito duro. O dia seguinte, mais. Ver-te finalmente, ali, a mais serena de nós todos. A realidade a apoderar-se de nós, e a revelar toda a sua brutalidade, que nos deixa completamente indefesos. Uns atrás dos outros, mais do que uma vez, fizemos a despedida possível que não era aquela que queríamos fazer. Observámos-te e dissemos a nós mesmos que seria bom que a tua partida tivesse sido tranquila, pacífica, como a expressão que tinhas naquele momento. A todos nós nos parece justo que depois de uma vida de luta, dificuldades, obstáculos, integridade, bondade... em que FAMÍLIA foi muito mais do que uma palavra... em que o legado deixado está mais do que à vista, uma partida suave como a da espuma das ondas que se dissolvem na areia praia, é o mínimo que se pode desejar.
O regresso a casa (seja lá isso onde for), ao trabalho, à rotina... a realidade a tomar conta de nós nos dias que se seguiram... foi tudo demasiado duro. Que o diga a outra parte de ti, que já cá não quer estar sem ti, mas que ainda tanta falta nos faz. Sei que têm muitas saudades um do outro, mas deixa-o connosco mais uns tempos... só porque seria mais duro ainda... muito mais... perdê-lo assim, agora, também. Falei com ele ontem. Não sei se me conseguiu ouvir naquela cama de hospital, enquanto dormia. Por isso se puderes dá-lhe uma palavrinha... nem que seja um ralhete dos teus... e diz-lhe que ainda é cedo. Explica-lhe que não há pressa, que terão muito tempo para conversar, e que os filhos, netinhos e bisnetinhos ainda precisam dele. Explica-lhe que o que todos nós sentimos por ele e por ti é forte, muito forte. Tão forte como o que vocês sentem por nós.
Passaram 10 dias... 10 dias... e ainda não acredito que aconteceu. Não acredito que da próxima vez que nos reunirmos não estarás na cabeceira da mesa a observar-nos a todos, entregue aos teus pensamentos, enquanto nós papagueamos disparates em voz alta, rimos, gritamos, choramos. Não acredito que não me despedirei novamente de ti, contigo a olhar para mim com a ternura nos olhos de quem vê algo de especial em nós, de quem nos conhece melhor que nós próprios. Não acredito que as tuas mãos cheias de histórias não me vão voltar a envolver o rosto, enquanto sorris e me perguntas se agora vou deixar crescer a barba. Não acredito que não vou voltar a sentir a alegria do reencontro, da chegada, do abraço, dos beijos e da felicidade por voltar a ver-te e ainda estares cá. Não estás. Dói pensar nisto... dói escrever estas palavras. Choro. Tenho chorado bastante, quando ninguém está a ver. Se estivesses chorava no teu colo. Imagino-te passares-me a mão pelo cabelo e cantares uma daquelas cantigas de embalar que gostavas de cantar, a filhos, netos e bisnetos. A seguir levantava-me, olhavas-me a rir, com aquele sorriso tranquilo, e eu dava-te um beijo na testa. Sentia-me melhor.
Gostava de conseguir escrever aquilo que sinto e penso, mas sinceramente e pela primeira vez na vida, sinto que não consigo expressar-me. O turbilhão ainda é demasiado grande. A realidade ainda não a tenho completamente absorvida, nem sei se alguma vez terei. A tua falta faz-se sentir sobretudo através de momentos e instantes. Muitos. Todos os dias. Várias vezes durante o dia, e noite. Será que ainda existe a possibilidade de isto ser tudo um sonho? Será que ainda posso acordar para uma realidade diferente? Começo a pensar que não...
Já te disse que lamento ter chegado meia hora atrasado?