quarta-feira, dezembro 28, 2022

Mobilidade: Atrás de Mim Virá, Quem Bom de Mim Fará

Na qualidade de alguém que trabalha e se desloca com frequência pelo centro de Lisboa, ao longo dos últimos anos tenho a sensação crescente de me movimentar numa cidade cada vez mais "poluída". Não, não me refiro ao drama dos combustíveis fósseis que leva milhares de ativistas imberbes a cometer atos de vandalismo em prol do futuro do planeta. Refiro-me às ditas soluções de mobilidade e ao impacto crescente das mesmas no espaço que, tal como uma qualquer espécie invasora, ocupam abalando fortemente o ecossistema envolvente.



O paralelismo entre as soluções de mobilidade e espécies invasoras parece excessivo? Vejamos então alguns aspetos:

As espécies invasoras são introduzidas muitas vezes artificialmente (pela mão do homem) em ecossistemas a bem de controlar outras espécies.
Por sua vez, na maioria dos casos acaba por resultar na extinção indesejada dessas espécies, enquanto ocorre uma proliferação da espécie invasora. Ao introduzir na cidade soluções como scooters elétricas, bicicletas elétricas ou trotinetas, um dos objetivos seria o afluxo de veículos próprios à cidade, não só para reduzir o trânsito como para minimizar o problema do estacionamento. O resultado prático é que, para construir ciclovias e outras infraestruturas para este fim, se reduziu a capacidade do fluxo do trânsito e se introduziu o risco de ser abalroado por uma besta eletrificada sem sequer nos apercebermos de onde a dita besta surgiu.
Os motociclistas lutaram durante anos para ter direito a circular na faixa do "bus", e só há pouco tempo isso aconteceu... quanto mais faixas de rodagem reservadas.

As espécies invasoras são, antes da sua introdução, consideradas mais "fofinhas" que aquelas espécies que se destinam controlar.
O problema é que mais tarde acaba por se revelar o oposto. Um motociclo tradicional é um veículo (tal como uma trotineta ou bicicleta) de duas rodas, fácil de movimentar no trânsito e fácil de estacionar. No entanto, ao longo dos anos foi-se reduzido progressivamente o número de locais onde se podiam estacionar motas na cidade de Lisboa, pelo que a bem de evitar o chamado "estacionamento selvagem" de motas, se optou por introduzir as trotinetas, que são estacionadas selvaticamente em todo o lado, desde passeios, faixas de rodagem, lagos de jardins ou até mesmo no fundo do Rio Tejo.
Enquanto motociclista já tive a necessidade de estacionar em muito passeio, mas sempre tive a preocupação de não incomodar. E não me recordo de alguma vez ter estacionado no Tejo...

As espécies invasoras reproduzem-se a uma velocidade estonteante e fora de controlo.
Neste momento, não sei quantas apps distintas existem para acesso à mobilidade, mas sei que são muitas. E o número de veículos multiplica-se a cada dia. Basta abrir uma app como a da Bolt, Lime, Woosh, por exemplo, fazer zoom out e ver os milhares de pontinhos que se acumulam sobre o mapa da cidade. As trotinetas tornaram-se assim o novo lixo da cidade, e portanto a nova poluição. E não apenas visual, quando acontece aquilo que referi no ponto anterior. Tenho para mim que existem cemitérios urbanos improvisados onde algumas trotinetas vão "falecer", que a maioria de nós desconhece. Ainda há uns tempos foi descoberto algures uma espécie de aterro com milhares de trotinetas abandonadas, cuja proveniência é desconhecida. O que fazer com este novo tipo de lixo?
Nos motociclos e mesmo com a introdução da lei das 125cc, este descontrolo nunca aconteceu até à chegada de uma nova espécie invasora - também ele relacionado com mobilidade: Uber Eats, Glovo, etc.

Depois de introduzida num local, uma espécie invasora dificilmente desaparece (a não ser que seja extinta por outra espécie invasora).
Não vejo como se poderá reverter ou alterar o flagelo que é esta lógica de mobilidade que aqui descrevo. A utilidade da mesma é evidente, mas a execução não podia ser pior. Isto cria um dilema: como acabar com algo que também faz falta? Será preciso existir algum tipo de evolução (imagino que num futuro apenas a médio/longo prazo). O meu receio é que o que vier a seguir possa ser ainda pior.
Tal como muita gente que certamente reclamava das motas em circulação na cidade certamente preferisse agora ter essa realidade em detrimento da atual, existe o risco de acontecer o mesmo com o que vier a seguir a esta realidade.


Resumidamente: em prol de ter uma cidade livre de carros e motas e com menos poluição, temos uma cidade pejada de bicicletas, trotinetas, scooters elétricas, tuktuks, Glovos, Uber Eats, que circulam indiscriminadamente pelas estradas, passeios ou ciclovias, estacionando onde lhes apetece, tornando impraticável a circulação a pé na maioria dos locais e dificultando a circulação automóvel graças não só à inaptidão para andar na estrada (não que isso os impeça) mas também à redução progressiva das infraestruturas para poder escoar o trânsito a bem da criação de mais e mais ciclovias.