quarta-feira, dezembro 28, 2022

Mobilidade: Atrás de Mim Virá, Quem Bom de Mim Fará

Na qualidade de alguém que trabalha e se desloca com frequência pelo centro de Lisboa, ao longo dos últimos anos tenho a sensação crescente de me movimentar numa cidade cada vez mais "poluída". Não, não me refiro ao drama dos combustíveis fósseis que leva milhares de ativistas imberbes a cometer atos de vandalismo em prol do futuro do planeta. Refiro-me às ditas soluções de mobilidade e ao impacto crescente das mesmas no espaço que, tal como uma qualquer espécie invasora, ocupam abalando fortemente o ecossistema envolvente.



O paralelismo entre as soluções de mobilidade e espécies invasoras parece excessivo? Vejamos então alguns aspetos:

As espécies invasoras são introduzidas muitas vezes artificialmente (pela mão do homem) em ecossistemas a bem de controlar outras espécies.
Por sua vez, na maioria dos casos acaba por resultar na extinção indesejada dessas espécies, enquanto ocorre uma proliferação da espécie invasora. Ao introduzir na cidade soluções como scooters elétricas, bicicletas elétricas ou trotinetas, um dos objetivos seria o afluxo de veículos próprios à cidade, não só para reduzir o trânsito como para minimizar o problema do estacionamento. O resultado prático é que, para construir ciclovias e outras infraestruturas para este fim, se reduziu a capacidade do fluxo do trânsito e se introduziu o risco de ser abalroado por uma besta eletrificada sem sequer nos apercebermos de onde a dita besta surgiu.
Os motociclistas lutaram durante anos para ter direito a circular na faixa do "bus", e só há pouco tempo isso aconteceu... quanto mais faixas de rodagem reservadas.

As espécies invasoras são, antes da sua introdução, consideradas mais "fofinhas" que aquelas espécies que se destinam controlar.
O problema é que mais tarde acaba por se revelar o oposto. Um motociclo tradicional é um veículo (tal como uma trotineta ou bicicleta) de duas rodas, fácil de movimentar no trânsito e fácil de estacionar. No entanto, ao longo dos anos foi-se reduzido progressivamente o número de locais onde se podiam estacionar motas na cidade de Lisboa, pelo que a bem de evitar o chamado "estacionamento selvagem" de motas, se optou por introduzir as trotinetas, que são estacionadas selvaticamente em todo o lado, desde passeios, faixas de rodagem, lagos de jardins ou até mesmo no fundo do Rio Tejo.
Enquanto motociclista já tive a necessidade de estacionar em muito passeio, mas sempre tive a preocupação de não incomodar. E não me recordo de alguma vez ter estacionado no Tejo...

As espécies invasoras reproduzem-se a uma velocidade estonteante e fora de controlo.
Neste momento, não sei quantas apps distintas existem para acesso à mobilidade, mas sei que são muitas. E o número de veículos multiplica-se a cada dia. Basta abrir uma app como a da Bolt, Lime, Woosh, por exemplo, fazer zoom out e ver os milhares de pontinhos que se acumulam sobre o mapa da cidade. As trotinetas tornaram-se assim o novo lixo da cidade, e portanto a nova poluição. E não apenas visual, quando acontece aquilo que referi no ponto anterior. Tenho para mim que existem cemitérios urbanos improvisados onde algumas trotinetas vão "falecer", que a maioria de nós desconhece. Ainda há uns tempos foi descoberto algures uma espécie de aterro com milhares de trotinetas abandonadas, cuja proveniência é desconhecida. O que fazer com este novo tipo de lixo?
Nos motociclos e mesmo com a introdução da lei das 125cc, este descontrolo nunca aconteceu até à chegada de uma nova espécie invasora - também ele relacionado com mobilidade: Uber Eats, Glovo, etc.

Depois de introduzida num local, uma espécie invasora dificilmente desaparece (a não ser que seja extinta por outra espécie invasora).
Não vejo como se poderá reverter ou alterar o flagelo que é esta lógica de mobilidade que aqui descrevo. A utilidade da mesma é evidente, mas a execução não podia ser pior. Isto cria um dilema: como acabar com algo que também faz falta? Será preciso existir algum tipo de evolução (imagino que num futuro apenas a médio/longo prazo). O meu receio é que o que vier a seguir possa ser ainda pior.
Tal como muita gente que certamente reclamava das motas em circulação na cidade certamente preferisse agora ter essa realidade em detrimento da atual, existe o risco de acontecer o mesmo com o que vier a seguir a esta realidade.


Resumidamente: em prol de ter uma cidade livre de carros e motas e com menos poluição, temos uma cidade pejada de bicicletas, trotinetas, scooters elétricas, tuktuks, Glovos, Uber Eats, que circulam indiscriminadamente pelas estradas, passeios ou ciclovias, estacionando onde lhes apetece, tornando impraticável a circulação a pé na maioria dos locais e dificultando a circulação automóvel graças não só à inaptidão para andar na estrada (não que isso os impeça) mas também à redução progressiva das infraestruturas para poder escoar o trânsito a bem da criação de mais e mais ciclovias.

segunda-feira, outubro 17, 2022

Era Uma Vez Uma Pandemia

 

Foi decretado recentemente o fim da pandemia em Portugal. Pelo menos terminaram algumas das medidas que visavam de alguma forma proteger a saúde das pessoas e minimizar o contágio do vírus. Ao ponto em que agora se uma pessoa estiver infetada com COVID mas não tiver sintomas, pode, deve e terá de ir trabalhar. Se por outro lado tiver sintomas, deverá fazer o "caminho das pedras" de quem pede uma baixa médica tradicional, deslocando-se até ao centro de saúde da sua localidade, para ter uma consulta com o médico de família que não terá, e pedir "o papel" da prescrição de um teste ou "o papel" da baixa.

Tendo em consideração o cenário que passei a observar à porta do centro de saúde da minha localidade, por onde passo todas as manhãs, se apanhar COVID e mesmo que esteja a morrer... a asfixiar... a precisar de um ventilador... ou a tossir dois pulmões cá para fora... prefiro ir trabalhar e "espalhar a magia" junto dos meus colegas.

Viva a coerência.

segunda-feira, outubro 10, 2022

Qual Papel? O Papel...

Num mundo que já é politicamente incorreto fazer coisas como beber água de uma garrafa de plástico, em virtude da preocupação ambiental, continuo diariamente a deparar-me com pequenas coisas que (ao contrário de beber água por uma garrafa de plástico) me deixam pasmado... uma delas prende-se com a cultura do "papel" para comprovar qualquer coisa que seja, nomeadamente pequenas transações comerciais. Se por um lado temos todo um cruzamento tecnológico de informação para efeitos fiscais, onde no limite o nosso histórico de atividade diário pode ser reconstruido para saber uma série de coisas que fazemos, desde onde e quando tomamos café, onde e quando almoçamos (no limite com quem), onde e quando compramos roupa, mercearias, etc., por outro lado continuamos a receber um papelinho sempre que pagamos algo. Em boa parte dos locais onde faço pagamentos indico logo à cabeça que não preciso de talão, ainda que isso na maioria dos casos vá dar ao mesmo porque quem atende o cliente do lado de lá opta por ignorar esta informação, ou simplesmente processa-a mentalmente tarde demais. Foi o caso na passada sexta-feira, quando em resposta ao simples pagamento de um café, recebi um talão que rivaliza com alguns rolos de papel higiénico disponíveis no mercado. A minha questão é: porquê? Na era dos pagamentos eletrónicos, das faturas eletrónicas, do mundo digital... porque raio temos de levar com um comprovativo do pagamento em papel, não solicitado, em que o desperdício é algo simplesmente gritante. No caso em particular, falamos de 45 cms de papel para registar o pagamento de um simples café. Meditemos.

segunda-feira, agosto 22, 2022

Último Olhar

A época de férias costuma ser uma boa oportunidade para retomar ou por em dia as atividades que ao longo do ano vamos deixando para segundo plano de forma inadvertida, por muito que gostemos de as fazer. No meu caso, este ano, fiz planos para colocar a leitura atrasada em dia. Não cumpri os objetivos de leitura a que me propus, mas também não foi propriamente um falhanço. Do que li, queria destacar um livro que gostei bastante: Último Olhar, de Miguel Sousa Tavares. Não sendo um dos seus melhores romances, como considero por exemplo Equador ou Rio das Flores, não deixa de ser um livro bastante bom e, no caso em particular por abordar alguns temas que mexem comigo, ficará na minha memória. Um cruzamento de duas narrativas muito diferentes, que se tocam, com um enquadramento na atualidade relacionada com a pandemia. Bom para fazermos alguma reflexão. A quem ainda possa estar de férias (o que já não é o meu caso) e que tenha os mesmos objetivos de colocar a leitura em dia, recomendo.

terça-feira, agosto 02, 2022

Adeus Avozinho...

"Olh'ó meu netinho!!!"

Era assim que o meu avô atendia o telefone sempre que eu lhe ligava... foi assim que o fez no passado dia dos avós quando em boa hora fui lembrado que era uma boa ocasião para lhe dar um telefonema... era assim que me saudava e que agora nunca mais voltará a saudar com essa alegria que ia buscar mesmo quando as forças para tudo o resto lhe pareciam faltar. Bendito último telefonema em que falámos só disto e daquilo (até de medronho) mas que serviu para alegrar um pouco o seu dia (e consequentemente o meu). Mal sabia eu que seria a última vez que conversaríamos... Ainda bem que liguei. Dois dias depois a sua luz apagou-se de forma rápida e sem aparente sofrimento, sem necessidade de hospitais ou aquele prolongar de sofrimento mais que desnecessário.

Na semana anterior e depois de um episódio que o fez ir passar quase 24h nas urgências de um hospital, comentava comigo que estava cansado. Ele, que até então dizia sempre que o único problema que tinha eram as pernas... reconhecia que o "motor" como ele lhe chamava começava a falhar. Lá lhe escapou num breve momento de desânimo que achava que estava quase a partir, mas eu respondi-lhe que não somos nós que decidimos o momento, ao que concordou comigo e seguiu em frente com a conversa, buscando algumas memórias longínquas que me fizeram estremecer por dentro por serem as minhas também. Existe qualquer coisa na constatação que alguns dos melhores momentos da minha vida foram também os dele. Coisas simples, pequenas, mas que ficaram na memória de ambos e que tinham relevância para os dois.

As brincadeiras no relvado das traseiras na casa da Quinta do Morgado, a aproveitar o fresco do final da tarde...
O toque dos pedaços de madeira e das ferramentas arrumadas na cave onde fazia alguns trabalhos...
O cheiro das sardinhas que assava no quintal ou do franguinho que ocasionalmente trazia para casa...
A minha chegada de surpresa quando resolvia ir ter com ele, de expresso, para passar as férias de verão na terra...
As brincadeiras e gargalhadas quando dormíamos todos no chão da sala nas noites mais quentes de verão...
A satisfação que sentia quando o ajudava numa qualquer tarefa como semear batatas, cortar lenha ou fazer a vindima...
O orgulho que sempre demonstrou pelos pequenos objetivos que eu fui alcançando ao longo da minha vida e que vivia quase mais intensamente do que eu...

Enquanto percorria as várias centenas de quilómetros que me levariam ao derradeiro local da despedida do meu avô (a sua terra, para onde sempre quis voltar), consegui percorrer também durante várias horas um conjunto de memórias e lembranças que nunca se repetiram nem sobrepuseram, e sempre tiveram um denominador comum: o amor que sentíamos e sentimos um pelo outro.

Nos últimos tempos e apesar da saúde não abundar, andava feliz, a saborear as pequenas coisas, com uma certa "leveza". E por estranho que possa parecer, essa "leveza" (já tentei mas não consigo explicar melhor ou por outras palavras aquilo a que me refiro) fez-se sentir ao longo de dia duro... difícil... muito difícil... mas que parecia estar presente nas conversas que as muitas pessoas (mais do que aquelas que eu imaginava ver num funeral marcado de um dia para o outro, longe da metrópole e no seu último regresso à terra, durante um dia de semana e em período de férias para muitos) tiveram ao relembrar as memórias que tinham do Ti Zé Custódio. Só pode significar o óbvio que é a natureza do ser humano que partiu e que com a sua partida nos deixou a todos verdadeiramente mais pobres.

Esta pessoa que, não o dizendo apenas por ser meu avô, era um modelo de como devia ser toda a espécie humana... alguém que exalava bondade, simpatia, empatia e amor pelo próximo... alguém que passou a vida a ajudar os outros muito mais do que a ajudar-se a si próprio... alguém que nunca teve uma atitude negativa para com ninguém, a que se possa apontar o dedo... era o ser humano mais simples e ao mesmo tempo mais complexo que conheci. Uma vida inteira de trabalho, sacrifício, dedicação aos outros, amor extremo por toda a sua família e cujo maior desejo e prazer era ver reunida em seu redor, concederam-lhe o direito mais que legítimo a alguma teimosia que refinadamente desenvolveu ao longo dos últimos anos, mas da qual agora sentiremos todos a falta. "Partiu o nosso teimoso", disseram alguns com pesar... e é isso mesmo que dói: a partida e não a teimosia - essa até podia ficar se nos permitisse poder estar com ele mais algum tempo.

90 anos são ainda assim uma vida longa, pelo que - por muito que seja difícil de o ver agora - o sentimento que aqueles que cá ficam devem ter é o de gratidão mais do que o de perda ou mágoa. Gratidão por ter podido conviver com alguém assim, num contacto tão próximo e que invariavelmente marca e toca as vidas de todos aqueles com quem esteve em contacto. Se isto é algo que para aqueles mais próximos como a irmã, os filhos, os netos e até os bisnetos é mais do que óbvio, tornou-se óbvio também nas palavras daqueles que sendo menos próximos ainda assim o testemunharam neste último adeus.

Da minha parte e nos dias que se seguiram a um adeus meio difícil e complicado de fazer, continuo diariamente a viver na minha cabeça acontecimentos, histórias, lembranças, palavras ou meras imagens, que me fazem sentir triste e feliz ao mesmo tempo, uma dualidade de sentimentos que só a pessoa simples mais complexa do mundo poderia provocar em alguém. Fica para já a saudade, muita saudade do meu Avô Custódio, que consigo ver mentalmente a cada segundo a fazer as coisas mais mundanas e elaboradas (mais uma dualidade...) como sair de madrugada pelo meio do nevoeiro com uma serapilheira a fazer de casaco para ir apanhar medronhos... no topo de uma escada a apanhar azeitonas para um cesto de verga... a levantar a tampa da dorna para mexer um pouco mais a uva a fermentar... a construir um muro, um telhado ou até mesmo uma casa com as suas próprias mãos e a força dos seus braços... a dosear a intensidade do lume das torgas no alambique para não queimar a aguardente... sentado à porta de casa a fazer festas aos seus grandes e fiéis amigos canídeos... a observar silenciosamente e com um sorriso nos lábios a família em seu redor à mesa da refeição na maior das algazarras... a roubar um beijo à sua Conceição, a Mulher (com M grande) da sua vida, que por entre os ralhetes e alguns elogios, as zangas e as alegrias, no meio da saúde e da doença, nos momentos de tristeza e nos momentos de festa, à qual sempre se dedicou ao longo de uma vida feita de altos e baixos, superáveis apenas e graças ao amor que construíram e nutriram ao longo de décadas, um pelo outro. Sentia muito a sua falta, era sabido e certo. Agora está com ela, possivelmente a soltar uma graçola qualquer enquanto ela ralha com ele só por ralhar, para logo a seguir olharem os dois cá para baixo, com um sorriso nos lábios, para aqueles que cá ficaram e que sentem muito... mas mesmo muito... a sua falta.

Adeus Avozinho... um beijinho...

quarta-feira, julho 13, 2022

Regresso às Viagens (Pirinéus, 13/6)

O terceiro dia da viagem seria o primeiro com o grupo completo e estávamos todos com vontade de finalmente começar a atravessar os Pirinéus. "Atravessar" seria o termo certo, já que ao longo deste (e dos dias seguintes) faríamos uma espécie de rendilhado no percurso entre Espanha e França (passando por Andorra), o que tornaria a viagem muito mais interessante do que simplesmente percorrer a habitual rota transpirenaica que a maioria da malta faz. Cortesia dos nossos expatriados do grupo, que já conhecem aquilo de trás para a frente. O plano para o dia incluía cerca de 350 kms de estradas cuja qualidade se revelaria logo nos primeiros troços percorridos...


Começaríamos o dia com um pequeno-almoço rápido no café/restaurante Viena junto ao nosso hotel B&B (que em vez de "bed and bath" deveria querer dizer "bom e barato", ainda que sem pequeno almoço incluído) e logo tratámos da arte de albardar as burras, para seguir viagem. Por esta altura o Rui já só falava de "isto, aquilo e aqueloutro".


Os primeiros metros de estrada seriam recheados de curvas logo até à primeira paragem em Portbou. Era impossível não parar neste local para observar a paisagem e bater umas chapas do mar, das motas e dos feiosos, tudo com o enquadramento certo...




Esta seria a primeira de 4 travessias fronteiriças que faríamos naquele dia e pelo que víamos até ao momento, a coisa prometia. A partir dali faríamos mais alguns kms a acompanhar a costa francesa até começarmos a rumar mais em direção a oeste. Rapidamente chegaríamos à segunda travessia fronteiriça, parando no Col d'Ares para admirar a paisagem.

 

"Col" significa passagem de montanha, e esta seria uma de muitas que percorreríamos ao longo dos vários dias de viagem. Esta passagem tem relevância histórica relacionada com a guerra civil espanhola.


Neste local em particular, veríamos o primeiro "calhau" digno desse nome, da viagem. Um monumento com a representação de um olho, com a seguinte transcrição originalmente escrita em Catalão:

"Aos republicanos espanhóis, civis e militares; aos que atravessaram o Col d'Ares em janeiro-fevereiro de 1939. A Retirada: Epílogo de um drama humano, sem precedentes na História. É aqui que as dores de uma guerra terminam e as de um exílio que desterra começam! Que a amargura de uma saudade não faça perder a esperança! Prats Endavant, Set. 2002”


A paisagem, o percurso traçado e o bom tempo convidavam a seguir viagem. Por isso era altura de deixar de olhar para calhaus e fazermo-nos à estrada.

Quando tratei da minha logística para a viagem, achei que ir para os Pirinéus era coisa que justificava roupa mais quente. Nada faria antever que iríamos fazer a viagem numa das semanas mais quentes do ano, em que praticamente todos os dias iríamos rolar debaixo de temperaturas na casa dos 40 graus. Este primeiro dia não era exceção, por isso sentíamos a necessidade da hidratação pontual para o bem estar físico de todos...


O Rui fazia questão de meter conversa com tudo e todos. Desta feita resolveu importunar um pobre canito... um galgo escanzelado e tão ou mais feio que ele, que se fazia acompanhar pelos donos e que lá teve de levar umas festas das manápulas do espanhol. Até para se ser cão é preciso ter sorte.

Os kms continuavam a ser alegremente percorridos, o calor continuava a subir e a fome começava a dar sinal, pelo que parámos num spot já conhecido do Michel: o Ca La Paquita em Olot. Deixámos as motas à sombra (pelo menos à hora que estacionámos porque quando saímos já estavam a ferver ao sol) e fomos ver da já merecida bucha.



A parte gastronómica da viagem continuava a ser top e a fazer jus ao resto da experiência. Tenho a convicção que o dobro dos dias a andar de mota por aquelas bandas faria de mim um obeso e teria de voltar para casa num sidecar, atrelado ou algo semelhante. Mas para já seguia saboreando os "primer y segundo" que me punham à frente sem grande peso, pelo menos na consciência.


O calor era realmente abrasador e mais abrasivo era o alcatrão que com ele devorava a borracha do meu pneu da frente a olhos vistos. Rapidamente percebi que não me iria escapar ao mau olhado que o Pedro me lançara logo no início da viagem e comecei a pensar que teria de fazer uma paragem para substituir o pneu que teimosamente não tinha trocado em Portugal.

Próximo do final da tarde fizemos uma paragem numa oficina que estava fechada. Enquanto esperávamos que abrisse (o que nunca veio a acontecer) aproveitámos para fazer uns telefonemas para outras oficinas alinhadas com o percurso que ainda tínhamos pela frente e comecei a temer não arranjar um pneu decente, ou um pneu de todo, para montar. Numa derradeira tentativa lá contactámos uma oficina que confirmou ter o pneu que eu queria, mas teria de chegar lá antes das 18h30 para que o montassem. Pedi para me guardarem o pneu sem sequer perguntar o preço (tinha para mim que, sendo a oficina em Andorra, teria de vender um rim para o pagar) e seguimos viagem em modo papa-léguas para não falharmos. E assim foi.


Mal cheguei à oficina Rilei em Andorra, mandaram-me entrar e puseram-me a mota nos cavaletes, já com o pneu da frente totalmente slick. Tratei de tudo com o dono da oficina falando com ele em castelhano, para no final da conversa perceber que era um português de seu nome Jorge. As instruções para chegar ao café mais próximo e beber umas cañas enquanto esperávamos pela montagem do pneu já foram dadas na língua de Camões. Surpresa das surpresas, não tive de vender qualquer orgão do meu corpo porque o pneu foi vendido a um preço mais que razoável, pelo que logo houve malta invejosa já a pensar que também seria boa ideia mudar pneu...


Mas não tínhamos viajado de tão longe para andar a fazer manutenção às motas. E como a situação ainda que desafiante até se tinha desembrulhado rápido, depois de montado o pneu ainda fomos ver as vistas conforme tínhamos inicialmente programado.

No meio disto tudo, o tempo que estivemos parados foi aquele em que caiu uma chuvinha que já não chegámos a apanhar. Subimos no entanto com precaução até Port d'Envalira, a 2408m de altitude, para evitar fazer asneira, sobretudo com um pneu novo cheio de goma a rolar em estrada molhada.



E como não queríamos deixar nada por ver, dali fomos ao miradouro do Canillo, um local impressionante com uma vista a pique para o Collent de Montaup.



Ainda só tínhamos encontrado um português desde que chegáramos a Andorra, pelo que ali foi o sítio certo para encontrar outro, também de mota, que logo aproveitámos para nomear fotógrafo de uma chapa em grupo.

 

Entretanto a estrada já estava quase seca, pelo que era boa altura para ir tratar do checkin no hotel Garden Andorra, onde pernoitaríamos, e começar a pensar na parte gastronómica. A descida foi animada por boas curvas que apanhámos novamente em direção ao centro de Andorra por onde já tínhamos passado.

Infelizmente dado o avançado da hora a que nos despachámos do checkin, banhoca, etc., os restaurantes nas proximidades estavam todos fechados ou prestes a fechar. Uma pesquisa rápida no amigo Google e apareceu-nos um que talvez salvasse a noite, pelo que fizemos um passeio noturno até ao El Raim, onde uma simpática senhora nos atendeu sem qualquer problema. O restaurante tinha boa pinta e percebia-se que a especialidade eram as carnes grelhadas, pelo que praticamente só foi necessário escolher o vinho para acompanhar...


Já de fome (e sede) saciada, agradecemos à simpática senhora que nos atendeu já um bocado fora de horas, que sozinha deu conta do nosso jantar na grelha e ainda assim nos atendeu super bem.

 

Fizemos o caminho de volta para digerir o jantar (desta feita como o Rui não estava responsável pela navegação, percorremos a distância normal) e voltámos ao hotel para descansar de um dia longo e que - graças a mim - nos tinha apresentado alguns desafios de logística que por fim foram ultrapassados da melhor forma e com o espírito de grupo e camaradagem com que já sabemos podemos contar.

terça-feira, julho 12, 2022

Regresso às Viagens (Pirinéus, 12/6)

Na continuação da rota planeada cuidadosa e minuciosamente para a viagem de ida até Figueres, apresentavam-se hoje pouco mais de 500 kms pela frente, pelo que o dia teve necessariamente de começar bem cedo. Pelo meio iriamos encontrar-nos com o Rui e o Michel, para depois rumar já como um grupo até ao destino final do dia.



Antes de partirmos pudemos constatar mais algumas peculiaridades da povoação. Além das levadas que proporcionavam um som constante de água a correr onde quer que estivéssemos e dos estranhos cenários com duendes que se encontravam em cada virar de esquina, janela ou vaso com plantas, deu para perceber que algo de estranho se passava com o relógio da torre da igreja. Basicamente, a torre tinha não um, mas dois relógios (ambos com a hora errada e desfasada em alguns minutos entre si) que tocavam também de forma independente. O que é sempre porreiro durante a noite, porque temos direito a ouvir duas vezes as badaladas, a cada hora, sem que em nenhum dos toques a hora esteja certa.





Depois de respirar o ar fresco matinal por um bocado foi tempo de comermos umas tostadas como pequeno-almoço e albardar as burras como de costume, para seguir viagem.





O percurso deste dia estava preenchido com mais curvas que o anterior, o que permitiu rolar de forma mais animada, enquanto tínhamos acesso a uma envolvente também mais interessante. O calor continuava a fazer-se sentir, pelo que quando começámos a percorrer a estrada junto ao rio Ebro, começou a apetecer-nos parar em algum lado para refrescar.



O Pedro usou as suas avançadas capacidades de navegação para tentar chegar ao Embalse de Mequinenza, em Caspe, e meteu por uma estrada de terra batida adentro com a velha máxima alentejana em mente: “é já ali”.

Não era. Andámos até não nos ser permitido andar mais e na impossibilidade de chegar ao embalse, resolvemos antes ir beber uma caña ao parque de campismo que se nos apresentava ali ao lado. Foi a incursão de offroad possível da viagem não obstante algumas estradas de merda bem piores que iríamos apanhar mais à frente.

Nota do autor: será definido atempadamente o léxico utilizado durante a viagem para classificação técnica das estradas, que varia entre “de merda” e “das boas”, sendo que por vezes a lógica da classificação possa ser invertida, ficando a interpretação correta ao cuidado do leitor.



No dito parque de campismo, recusaram-se servir-nos o que quer que fosse porque não estávamos lá alojados, pelo que demos por finda a incursão de offroad e voltámos ao alcatrão para seguir viagem.

A hora do almoço aproximava-se e a próxima paragem seria no restaurante Ficus & Persica em Fraga. Um spot com estilo “american diner” escolhido pelo Rui, com quem nos encontraríamos para almoçar aí mesmo.



Depois de aviarmos uns hambúrgueres generosos e mandarmos abaixo mais umas cañas, enquanto começava o chorrilho de baboseiras, lérias e outras mentiras, era tempo de raspar a mosquitada da viseira dos capacetes e seguir novamente viagem debaixo do calor que não dava qualquer tipo de abébia. Por esta altura começava a ter dúvidas acerca do equipamento que levava porque estava a contar com temperaturas mais baixas do que as que estávamos a apanhar…

Uma vez mais, o ponto seguinte de paragem seriam umas bombas de gasolina nos arredores de Vic, onde nos encontraríamos com o Michel, completando assim o grupo.



Estava assim completa a formação da nossa viagem, contando com os seguintes elementos (ordenados por cilindrada):
- Michel (KTM 1290 Super Adventure)
- Rui (Honda VRF1200F)
- Pedro (BMW S1000XR)
- Marco (BMW F900R)

Enquanto abastecíamos verificámos que a típica incontinência a VFR do Rui já se estava a manifestar…



Demos-lhe o achincalho que se impunha e logo a seguir partimos animados, finalmente em grupo, para as curvas que se seguiriam. Pouco tempo depois já estávamos perdidos num acesso a um caminho agrícola sem jeito nenhum, onde aproveitámos para parar, beber água e ser comidos por nuvens de mosquitos típicos de locais onde só passam tratores ou carros a transportar animais e bosta de vaca.



Eu e o Pedro devíamos acusar algum cheiro a cavalo, talvez do tempo de viagem já longo, porque fomos o alvo de eleição da bicharada, conforme se pode constatar.





Enxotamos à bicharada, recuperámos à orientação e regressámos ao nosso caminho, até ao local da pernoita: um B&B bem em conta, em Figueres, onde aparcámos as motas à porta para não mais lhes pegar nesse dia.



A localização privilegiada deste hotel no meio de uma zona industrial sem jeito nenhum nos arrabaldes da cidade, proporcionou-nos uma alegre caminhada noturna pelo meio de um gueto culturalmente interessante, até chegarmos a um restaurante decente para poder jantar.

O Rui, exibindo as suas inigualáveis skills de navegador, conseguiu transformar o que seria uma caminhada de uns 1 ou 2 kms no dobro, o que nos permitiu a todos chamar-lhe muitos nomes e ficar a conhecer melhor aquela zona onde nos situávamos.

Por fim chegámos ao restaurante. Um local castiço chamado Pollo Pollo, onde adivinhe-se… comemos frango, numa agradável esplanada exterior onde tentámos escapar ao calor com a ajuda de mais umas cañas.



Foi altura do tradicional briefing de início da nossa viagem, com uma visão mais abrangente do que iríamos fazer nos próximos dias, focando já com mais detalhe no trajeto do dia seguinte.



Mais tretas para cá, baboseiras para lá, mentiras sobre “isto, aquilo e aqueloutro” e entretanto já se fazia tarde. Resolvemos regressar ao hotel, desta vez pelo caminho mais curto e com direito a uma paragem para um geladinho na esplanada de um McDonalds (alegrem-se aqueles que já julgavam que iam ouvir uma história de copofonia qualquer). Assim se terminava o dia da congregação do grupo de viajantes e se antecipava com expectativa o que iria começar bem cedo no dia seguinte.

domingo, julho 10, 2022

Regresso às Viagens (Pirinéus, 11/6)

As saudades de abrir asas e a vontade de viajar de mota por terras mais distantes há muito que se vinha a intensificar. As paranóias pandémicas foram limitando a nossa liberdade e para quem preza sentir-se livre, como eu prezo, não poder fazer aquilo que mais gostamos é um preço demasiado alto a pagar. Felizmente este ano houve finalmente oportunidade de recuperar algum do tempo perdido e a viagem que passo a relatar foi um dos pontos altos nesse sentido.

Há cerca de um mês atrás, os feriados de junho deram o mote e com apenas 3 dias de férias conseguiu-se delinear um plano de 9 dias a rolar por estradas lusas, espanholas e até francesas. O objetivo? Percorrer os Pirinéus. A companhia? Partiria de terras lusas com um bom amigo e companheiro de estrada, mas alguns dos camaradas com quem faria o resto da viagem vivem por terras de nuestros hermanos, pelo que a própria ida (e volta) até ao seu encontro, já seria boa parte da aventura.

Este é o relato desse início de viagem não menos mítico que os restantes dias que teríamos pela frente ao percorrer os Pirenéus de uma ponta a outra.

O plano foi delineado cuidadosamente com recurso à sapiência, experiência prévia, informação privilegiada, conhecimento ancestral… facilmente obtenível por qualquer um a partir do Google Maps. A rota traçada era mais ou menos isto, até porque normalmente sai qualquer coisa ao lado.



Eu tive de fazer uma viagem antes do dia da partida, não saindo por isso de Lisboa, pelo que o ponto de encontro com o Pedro seria nas bombas do Couço, pelas 8h.



Eu cheguei primeiro e logo a seguir chegou o Pedro com uma notícia trágica… esta viagem começaria com uma tragédia do pior tipo: um falecimento.



Fizemos o nosso momento de luto… e logo a seguir o Pedro removeu os restos mortais da carcaça de um pardal que ornamentava a lateral direita da sua ventoinha, com um pau.

Abrimos as hostilidades das “selfies” que iriam ser uma constante ao longo da viagem, tomámos um cafezinho e fizemo-nos à estrada com ganas (sem no entanto esquecer que não se devem ultrapassar traços contínuos nas barbas da GNR de Estremoz - um episódio anterior, a não repetir).



A primeira paragem para abastecimento seria em Badajoz como manda a regra. Não comprámos caramelos porque ouvi dizer que o combustível está muito caro, que o dinheiro não chega para tudo e que há que definir prioridades. No meu caso, consegui fazer esta viagem porque não comi um único caramelo enquanto rolámos durante estes 9 dias. Foi duro, mas valeu a pena.



Nesta altura o Pedro começou a armar-se em ave agoirenta, a olhar para o meu pneu da frente com malícia, a escarnecer da condição da borracha e tal… mas eu disse-lhe que ele estava mas era armado em mariquinhas e mandei-o dar uma curva. Ele acabaria por dar várias ao longo desta viagem.

Depois de abastecer e olhar de relance para um saquinho de caramelos que o demónio colocou mesmo ali para me atentar, voltámos à estrada porque a distância a percorrer no primeiro dia ainda nos deixava atentos às horas, mesmo que pouco.

Mais uns quantos kms percorridos e a necessidade de abastecer juntou-se à necessidade de comer. Felizmente encontrámos as duas coisas no mesmo sítio: na povoação de Don Rodrigo, em Cidade Real.



O restaurante “escolhido” (aquele que por mero acaso estava em frente às bombas) foi o El Pilar. Como ainda faltavam uns minutos para as 13h, mandámos vir umas cañas para abrir as hostilidades, ao que nos deixaram abancar de imediato e fazer o nosso pedido.

Entrámos em modo gastronómico espanhol, com direito ao menu com “primer y segundo”, modelo que nos acompanharia na maioria das refeições que faríamos nos dias seguintes.



O Pedro estava tão entusiasmado com a refeição, que depois de muito escolher entre o vasto leque de opções de sobremesa... saiu-lhe na rifa um corneto da Camy. Ainda assim correu-lhe melhor que uns japoneses na mesa ao lado que acabaram por comer uma merda qualquer ao calhas, já que os espanhóis são sobejamente conhecidos pelas suas capacidades linguísticas e se esforçam imenso por se fazer entender.

Mas não estávamos ali (só) para comer, pelo que tínhamos de voltar à estrada. Por esta altura já fazia um calor do caraças e o meu pneu da frente começou a padecer em virtude do mau agoiro do Pedro, esfarelando-se em bocados de borracha no alcatrão a ferver sempre que lhe era dada essa oportunidade… não fora este mau olhado e tudo teria corrido bem nesta viagem, mas um gajo nem sempre pode escolher com quem viajar.



Na paragem seguinte deu para nos distrairmos um pouco, quer com uma jeitosa que dava água fresquinha a um canito, quer com uma família de marroquinos que entrou pelas bombas adentro e levou um pino consigo debaixo do carro como se nada tivesse acontecido.

Quem faz uma viagem de mais de 800 kms de mota num dia, sabe que a maioria das paragens são feitas em estações de abastecimento, sobretudo quando vão acompanhados de alguém como eu, que tem uma mota com um depósito do tamanho de um copo de shot…



Mas nem sempre foi assim. O Pedro lembrou-se que trazia um saco de amendoins a que era preciso dar despacho, pelo que as cañas seguintes tiveram dois acompanhamentos diferentes.





Dado o primeiro desbaste ao saco dos amendoins, estávamos finalmente próximos do local de pernoita: a Hosteria La Barbacana, em Teruel. O local foi fácil de encontrar e aparcar quase à porta não foi tema. Soube-nos bem parar as motas por aquele dia e aproveitar a envolvente.





Tramacastiel, onde ficámos, é uma pequena povoação situada num beco sem saída no meio de um vale. Para entrar e sair dali tem de se percorrer a mesma estrada curvilínea até chegar à via principal. A configuração da povoação é sui generis e existe muito pouco que ver além da hospedaria onde ficámos, das levadas de água que entram e saem de algumas casas e da decoração peculiar que encontrámos ao longo das ruas da povoação.



Bebemos mais umas cañas enquanto a nossa simpática anfitriã tratava do nosso check-in. Relaxámos um bocado da viagem na esplanada mesmo em frente e depois seria tempo de nos alimentarmos com um excelente jantar no mesmo local (mais um “primer y segundo”).



O jantar correu bem, mas quando tentámos passar à parte dos digestivos lá nos deram a provar umas merdas licorosas e uma bagaceira reles, completamente ao lado do que pretendíamos. Os espanhóis não sabem o que é uma aguardente de jeito. Bebemos whisky.

Este dia tinha sido longo e o seguinte não seria muito diferente, pelo que depois de umas voltas a observar aquela terra e as suas peculiaridades, era tempo de descansar.