segunda-feira, agosto 22, 2022

Último Olhar

A época de férias costuma ser uma boa oportunidade para retomar ou por em dia as atividades que ao longo do ano vamos deixando para segundo plano de forma inadvertida, por muito que gostemos de as fazer. No meu caso, este ano, fiz planos para colocar a leitura atrasada em dia. Não cumpri os objetivos de leitura a que me propus, mas também não foi propriamente um falhanço. Do que li, queria destacar um livro que gostei bastante: Último Olhar, de Miguel Sousa Tavares. Não sendo um dos seus melhores romances, como considero por exemplo Equador ou Rio das Flores, não deixa de ser um livro bastante bom e, no caso em particular por abordar alguns temas que mexem comigo, ficará na minha memória. Um cruzamento de duas narrativas muito diferentes, que se tocam, com um enquadramento na atualidade relacionada com a pandemia. Bom para fazermos alguma reflexão. A quem ainda possa estar de férias (o que já não é o meu caso) e que tenha os mesmos objetivos de colocar a leitura em dia, recomendo.

terça-feira, agosto 02, 2022

Adeus Avozinho...

"Olh'ó meu netinho!!!"

Era assim que o meu avô atendia o telefone sempre que eu lhe ligava... foi assim que o fez no passado dia dos avós quando em boa hora fui lembrado que era uma boa ocasião para lhe dar um telefonema... era assim que me saudava e que agora nunca mais voltará a saudar com essa alegria que ia buscar mesmo quando as forças para tudo o resto lhe pareciam faltar. Bendito último telefonema em que falámos só disto e daquilo (até de medronho) mas que serviu para alegrar um pouco o seu dia (e consequentemente o meu). Mal sabia eu que seria a última vez que conversaríamos... Ainda bem que liguei. Dois dias depois a sua luz apagou-se de forma rápida e sem aparente sofrimento, sem necessidade de hospitais ou aquele prolongar de sofrimento mais que desnecessário.

Na semana anterior e depois de um episódio que o fez ir passar quase 24h nas urgências de um hospital, comentava comigo que estava cansado. Ele, que até então dizia sempre que o único problema que tinha eram as pernas... reconhecia que o "motor" como ele lhe chamava começava a falhar. Lá lhe escapou num breve momento de desânimo que achava que estava quase a partir, mas eu respondi-lhe que não somos nós que decidimos o momento, ao que concordou comigo e seguiu em frente com a conversa, buscando algumas memórias longínquas que me fizeram estremecer por dentro por serem as minhas também. Existe qualquer coisa na constatação que alguns dos melhores momentos da minha vida foram também os dele. Coisas simples, pequenas, mas que ficaram na memória de ambos e que tinham relevância para os dois.

As brincadeiras no relvado das traseiras na casa da Quinta do Morgado, a aproveitar o fresco do final da tarde...
O toque dos pedaços de madeira e das ferramentas arrumadas na cave onde fazia alguns trabalhos...
O cheiro das sardinhas que assava no quintal ou do franguinho que ocasionalmente trazia para casa...
A minha chegada de surpresa quando resolvia ir ter com ele, de expresso, para passar as férias de verão na terra...
As brincadeiras e gargalhadas quando dormíamos todos no chão da sala nas noites mais quentes de verão...
A satisfação que sentia quando o ajudava numa qualquer tarefa como semear batatas, cortar lenha ou fazer a vindima...
O orgulho que sempre demonstrou pelos pequenos objetivos que eu fui alcançando ao longo da minha vida e que vivia quase mais intensamente do que eu...

Enquanto percorria as várias centenas de quilómetros que me levariam ao derradeiro local da despedida do meu avô (a sua terra, para onde sempre quis voltar), consegui percorrer também durante várias horas um conjunto de memórias e lembranças que nunca se repetiram nem sobrepuseram, e sempre tiveram um denominador comum: o amor que sentíamos e sentimos um pelo outro.

Nos últimos tempos e apesar da saúde não abundar, andava feliz, a saborear as pequenas coisas, com uma certa "leveza". E por estranho que possa parecer, essa "leveza" (já tentei mas não consigo explicar melhor ou por outras palavras aquilo a que me refiro) fez-se sentir ao longo de dia duro... difícil... muito difícil... mas que parecia estar presente nas conversas que as muitas pessoas (mais do que aquelas que eu imaginava ver num funeral marcado de um dia para o outro, longe da metrópole e no seu último regresso à terra, durante um dia de semana e em período de férias para muitos) tiveram ao relembrar as memórias que tinham do Ti Zé Custódio. Só pode significar o óbvio que é a natureza do ser humano que partiu e que com a sua partida nos deixou a todos verdadeiramente mais pobres.

Esta pessoa que, não o dizendo apenas por ser meu avô, era um modelo de como devia ser toda a espécie humana... alguém que exalava bondade, simpatia, empatia e amor pelo próximo... alguém que passou a vida a ajudar os outros muito mais do que a ajudar-se a si próprio... alguém que nunca teve uma atitude negativa para com ninguém, a que se possa apontar o dedo... era o ser humano mais simples e ao mesmo tempo mais complexo que conheci. Uma vida inteira de trabalho, sacrifício, dedicação aos outros, amor extremo por toda a sua família e cujo maior desejo e prazer era ver reunida em seu redor, concederam-lhe o direito mais que legítimo a alguma teimosia que refinadamente desenvolveu ao longo dos últimos anos, mas da qual agora sentiremos todos a falta. "Partiu o nosso teimoso", disseram alguns com pesar... e é isso mesmo que dói: a partida e não a teimosia - essa até podia ficar se nos permitisse poder estar com ele mais algum tempo.

90 anos são ainda assim uma vida longa, pelo que - por muito que seja difícil de o ver agora - o sentimento que aqueles que cá ficam devem ter é o de gratidão mais do que o de perda ou mágoa. Gratidão por ter podido conviver com alguém assim, num contacto tão próximo e que invariavelmente marca e toca as vidas de todos aqueles com quem esteve em contacto. Se isto é algo que para aqueles mais próximos como a irmã, os filhos, os netos e até os bisnetos é mais do que óbvio, tornou-se óbvio também nas palavras daqueles que sendo menos próximos ainda assim o testemunharam neste último adeus.

Da minha parte e nos dias que se seguiram a um adeus meio difícil e complicado de fazer, continuo diariamente a viver na minha cabeça acontecimentos, histórias, lembranças, palavras ou meras imagens, que me fazem sentir triste e feliz ao mesmo tempo, uma dualidade de sentimentos que só a pessoa simples mais complexa do mundo poderia provocar em alguém. Fica para já a saudade, muita saudade do meu Avô Custódio, que consigo ver mentalmente a cada segundo a fazer as coisas mais mundanas e elaboradas (mais uma dualidade...) como sair de madrugada pelo meio do nevoeiro com uma serapilheira a fazer de casaco para ir apanhar medronhos... no topo de uma escada a apanhar azeitonas para um cesto de verga... a levantar a tampa da dorna para mexer um pouco mais a uva a fermentar... a construir um muro, um telhado ou até mesmo uma casa com as suas próprias mãos e a força dos seus braços... a dosear a intensidade do lume das torgas no alambique para não queimar a aguardente... sentado à porta de casa a fazer festas aos seus grandes e fiéis amigos canídeos... a observar silenciosamente e com um sorriso nos lábios a família em seu redor à mesa da refeição na maior das algazarras... a roubar um beijo à sua Conceição, a Mulher (com M grande) da sua vida, que por entre os ralhetes e alguns elogios, as zangas e as alegrias, no meio da saúde e da doença, nos momentos de tristeza e nos momentos de festa, à qual sempre se dedicou ao longo de uma vida feita de altos e baixos, superáveis apenas e graças ao amor que construíram e nutriram ao longo de décadas, um pelo outro. Sentia muito a sua falta, era sabido e certo. Agora está com ela, possivelmente a soltar uma graçola qualquer enquanto ela ralha com ele só por ralhar, para logo a seguir olharem os dois cá para baixo, com um sorriso nos lábios, para aqueles que cá ficaram e que sentem muito... mas mesmo muito... a sua falta.

Adeus Avozinho... um beijinho...