quarta-feira, dezembro 02, 2020

Rituais e Ressacas

Um amigo meu costuma dizer que vale mais um mau dia de férias do que um bom dia de trabalho. Andar de mota, para mim, é mais ou menos assim. Se tivesse que adaptar esta frase, poderia ser algo como "vale mais uma ida ao pão de mota, do que uma longa viagem de carro"...


Nos dias que correm passei de uma rotina que incluía percorrer um mínimo de cerca de meia centena de quilómetros por dia para umas escassas voltinhas ocasionais, a solo ou acompanhado, que me permitem desanuviar e tirar a barriga de misérias. Enquanto motociclista sinto-me a passar por uma espécie de "ressaca" prolongada que teima em não melhorar e dou por mim a salivar por uma voltinha maior ao fim-de-semana, enquanto invento desculpas durante a semana para vestir o equipamento e sair com qualquer uma das minhas meninas, que olham para mim como que em súplica sempre que abro o portão da garagem.

Esta escassez faz-me saborear mais intensamente tudo o que diz respeito ao ritual de sair, rolar uns quilómetros e voltar a casa com uma das minhas motas. Desde enfiar o capacete, calçar as luvas que parece que já conhecem a forma das minhas mãos, vestir o meu casaco de inverno meio coçado, até àquele instante em que finalmente dou ao "start". Seja a ouvir o cantar rouco da jovem alemã ao sussurro grave da madura japonesa, o que vem a seguir é sempre música para os meus ouvidos. Assim que piso o alcatrão e enrolo punho num suave crescendo, abre-se todo um mundo à minha frente, no qual me apetece perder em cada cruzamento para percorrer novos caminhos a descobrir ou redescobrir caminhos já percorridos.

Os quilómetros vão passando e começo a sentir o coração a bater no ritmo a que deve bater... o corpo a ganhar mobilidade... a "desenferrujar"... a adaptar-se a cada curva que se faz e desfaz, a entender as leis da física que nos permitem mover daquela forma e a desafiá-las de quando em vez naquele grau extra para ver até onde se consegue ir. Com um bocado de sorte, podemos apreciar o que se passa à nossa volta e que, numa viagem de mota, acaba sempre por nos envolver de forma diferente daquela que experimentaríamos noutro tipo de viagem qualquer. Seja num ritmo animado numa serra de curvas sem fim, seja num rolar constante naquela reta junto ao mar, seja na agitação do burburinho das ruas de uma cidade... Todo o caminho pode dar gozo percorrer, se for percorrido com prazer.

Até o cansaço que resulta de andar numa mota é diferente de tudo o resto que habitualmente experimentamos e acaba por nos fazer sentir bem, sentir realizados, quase que orgulhosos do que acabámos de fazer, quando conseguimos apreciar uma espécie de "descanso do guerreiro" após um dia inteiro ou apenas um par de horas a andar sobre duas rodas. E à semelhança de como tudo começa, também quando acaba se saboreia o ritual... retirar o capacete... descalçar as luvas que já parecem uma segunda pele nas nossas mãos... despir o casaco que nos envolveu e protegeu e por fim o silêncio do desligar de um motor. A seguir, à volta daquele motor ainda quente mas agora em silêncio, tudo se contrai e arrefece, como que num adormecer coletivo de uma combinação de peças mecânicas que juntas adquirem uma essência diferente, uma espécie de alma que a cada volta se vai entranhando em nós.

No final, apago a luz da garagem e fico a pensar no próximo momento em que teremos a oportunidade de repetir o que acabámos de fazer. Enquanto desço o portão olho mais uma vez para as minhas meninas e despeço-me com um "até amanhã", esperando que o amanhã me dê essa oportunidade. Caramba... gosto mesmo de andar de mota.

3 comentários:

mãe disse...

Maravilha filho. Tens mesmo o dom da palavra (escrita)Senti-me a fazer essas viagens contigo e a sentir todas essas boas sensações. Melhores dias virão e tu vais continuar a sentir todos esses bons momentos. Tu mereces e precisas. A vida não pode ser só trabalho
Beijinhos da tua mãe chata, que te ama do coração

Miguel Carmona disse...

Das situações em que o chavão: «A jornada é mais importante que o destino.»; tem alguma aplicabilidade prática... a maior parte das vezes apetece colocar o destino mais à frente só para prolongar um pouco mais a viagem :)
Espero que esteja tudo bem contigo e com os teus.

Abraço

Marco disse...

mãe: os dias serão tão melhoras quando o melhor que tirarmos deles, independentemente do momento que atravessamos ou atravessaremos... e a qualquer momento pego na mota e lá vou eu... e será um dia bom.

miguel:x Miguel, pá... tanto tempo! Prazer em ler-te! :D Sem dúvida, e tu és dos que percebem bem a que me refiro... o destino nem sempre (para não dizer raramente) é o mais importante. Abraço e mantém-te seguro também, e aos teus.