domingo, março 07, 2021

Eu, Burguês, Me Confesso

Sobretudo nos últimos tempos tenho tentado fazer uma dieta mental através da filtragem e do tempo que dedico a notícias e conversas sobre temas que considero tóxicos. A COVID tem sido prolífera no que diz respeito a muito deste lixo mental do qual é praticamente impossível tentarmos esquivar-nos, por temas direta ou indiretamente relacionados. O elevado número de "especialistas" em matérias variadas e diversas tem aumentado exponencialmente a cada mês de pandemia que passa, e os jornais e os programas televisivos têm cedido espaço e tempo de antena a muita desta gente que na falta de saberem fazer alguma coisa de jeito, fazem de conta que sabem. Infelizmente não consigo ignorar tudo o que gostaria de ignorar.

Recentemente partilhei entre amigos uma capa de jornal que fazia referência a um artigo de opinião de uma economista de seu nome Susana Peralta, cujo título era uma das frases da autora: "a crise devia ser paga por toda a burguesia do teletrabalho". Por algum motivo esta frase foi proferida por uma economista, e não por uma socióloga ou antropóloga ou outra "óloga" qualquer. Com os devidos descontos da praxe (que os dei, ao ler o artigo), sobre a descontextualização possível da frase e toda a explicação inerente à mesma, este tipo de afirmação é tão justo quão justa é a generalização que nela está implícita (e que dúvidas houvesse, é injusta).

Numa situação atípica como a que vivemos, não pode haver lugar a generalizações deste género como justificação para tomadas de decisão, porque a verdade é que cada um de nós, sejamos dos que perderam o trabalho, dos que viram o seu rendimento reduzido a uma fração do que era, ou dos que tiveram de se adaptar para continuar a trabalhar, vive neste momento dificuldades variadas e de níveis diferentes, independentemente da situação. Conheço que esteja desempregado há meses e não esteja para já preocupado com a situação. Conheço quem já esteja reformado e viva com receio de sair de casa e com receio pelo futuro. Conheço quem esteja em casa, a receber o seu salário a 100% enquanto funcionário público e a fazer 1 (sim, "um") dia de trabalho a cada duas semanas. Conheço quem esteja há um ano a trabalhar a partir de casa e a fazer "malabares" para apoiar a sua família enquanto faz ginástica para continuar a ser produtivo.

O termo "burguesia" só por si soa inevitavelmente a insultuoso nos termos em que foi proferido (por muito que a autora o tentasse justificar, incluindo-se ela própria nesse grupo), quando muitas das pessoas que estão realmente a trabalhar no dito regime de teletrabalho, estão sob uma pressão imensa resultante da falta da separação entre trabalho/família, resultante da falta ou inexistência de horários, resultante da intensidade de trabalho (maioritariamente de caráter intelectual) realizado em regime de clausura. É um sobresforço que muita gente faz, ciente como eu da sorte que tem em poder manter o seu trabalho (e vencimento) em tempos difíceis, mas que tem o seu preço. E esse preço é elevado, e será tão mais elevado quanto o tempo que esta situação durar. É por isso que quando leio um texto de uma pseudointelectual de esquerda armada aos pingarelhos e cujo principal objetivo será o de ganhar notoriedade (conseguiu), a sugerir que a crise deve ser paga pelos privilegiados e felizardos como eu, numa altura em que o estado "derrete" dinheiro das formas mais estapafúrdias que se possa imaginar, num país com a carga fiscal como aquela que temos, só me ocorre uma resposta: "bardamerda"!

São tempos sem dúvida difíceis para todos. Para uns mais do que outros. Para alguns até (porque os há sempre) será uma época de prosperidade. Mas claramente o critério para determinar quem é o mais "sortudo" e "beneficiado" e "privilegiado" nos dias que correm, não será certamente o de quem simplesmente conseguiu manter o seu trabalho. Eu por exemplo nesta altura dava tudo para ser aquele funcionário público que referi, e que recebe o seu salário por inteiro para trabalhar apenas 1 dia a cada duas semanas. Em vez disso luto por conseguir desligar do meu trabalho de "burguês" pelo menos ao fim-de-semana para me poder dedicar à minha família ou simplesmente a mim próprio (e nem isso consigo fazer).

3 comentários:

mãe disse...

Estou exatamente pelo que dizes...bardamerda para estas bestas, que normalmente não fazem nada e já estão com o futuro seguro, ou por pertencerem a algum partido ou outros... enfim.
Beijinho
mãe

António Maria disse...

Já dizia o Cristo: "Perdoai-lhes Senhor, que não sabem o que fazem"... Aqui ficaria bem : "Não lhes perdoeis Senhor porque sabem bem o que dizem"! E ao dizê-lo estão a acicatar ódios. Ódios dos dois lados da barricada! Dum lado o daqueles que estão em situação de perda de rendimentos porque, não olhando ao que os outros têm que trabalhar para, de algum modo, manter a sua situação económica, apenas vêm que aqueles não perderam rendimentos... Os outros porque se sentem subvalorizados e ainda em risco de serem penalizados por manterem os seus rendimentos... E já agora,em que campo é se encontra esta "senhora"? No dos que perderam rendimentos ou no dos que estão no tal teletrabalho que ela, de algum modo, penalizaria? Como Professora universitária arroga-se o direito de ser uma "opinion maker" encontrando guarida num periódico que certamente lhe paga bem pelas "opinions" que vai debitando, pelo que seria de perguntar afinal a que burguesia pertence ela própria!
Beijinhos
Pai

Marco disse...

pai: a senhora inclui-se ela própria na sua classificação de "burguesia". a questão aqui é que esta "burguesia" que é comentada no artigo não é generalizavel, já que toda a situação está a ser vivida de forma muito distinta por cada um de nós. certamente o estilo de vida dela será muito diferente do meu, por exemplo.