Dia 16 de outubro de 2017. O dia em que aquilo que ao longo dos anos me habituei a ver nas notícias, se tornou literalmente uma dura realidade. Tudo começou com um telefonema ao início da manhã, que me dava conta de que a aldeia (visível na imagem) tinha ardido por completo, e que em particular a casa que viu uma família inteira nascer, crescer e viver todo o tipo de acontecimentos, situações e emoções, tinha sido consumida pelas chamas violentas de um incêndio florestal, transformando-se em pouco mais do que umas frágeis paredes a albergar um enorme vazio. Dois dias passaram desde então e continuo sem conseguir digerir as imagens que vi quando me desloquei ao local, para ver com os meus próprios olhos aquilo em que o meu coração não queria nem podia acreditar. A minha reação foi incontrolável, não conseguindo fazer muito mais do que ajoelhar-me em frente a ela e chorar compulsivamente como uma criança.
E é precisamente de criança que me vêm as memórias, emoções e sentimentos que causaram essa mesma reação. É por ainda hoje recordar ao mais ínfimo detalhe e pormenor, quer a história quer as caraterísticas físicas daquele local que era mágico para mim, que não consigo ainda eliminar esta dor que arde lentamente cá dentro, como as chamas que consumiram tudo ali mesmo, naquele local. É para mim um incêndio que pode ter sido dado como extinto, mas que ainda não parou de arder.
Naquela casa viveram-se nascimentos, casamentos, divórcios, aniversários, natais, tristezas, festas, discussões, amizades, alegrias... sobretudo muitas alegrias. E este é o ponto: a casa para onde poderíamos sempre voltar, independentemente do que acontecesse. Enquanto criança passava um número significativo de meses naquele local. E na altura não preferia estar em qualquer outro. Vou para sempre recordar o seu aconchego durante o inverno e a sua frescura durante o verão. Vou para sempre recordar aquelas paredes e as suas irregularidades ao pormenor. Os soalhos de madeira torta. As mobílias que ao longo dos anos foram mudando e transformando o seu interior, entre louceiros, sofás, móveis de televisão, mesas e cadeiras. As escadas que subiam para os quartos, onde tantas vezes me sentei a brincar, à espera que fosse meia noite para abrir os presentes de natal junto à árvore, ou até daquela vez em que caí de lá e um dos meus dentes de leite desapareceu para nunca mais ninguém o encontrar. A sapateira por baixo da escada, onde me cheguei a esconder quando era pequeno. O relógio a que o meu avô dava corda como se de um ritual se tratasse. O toque desse relógio, imediatamente seguido do toque do relógio da igreja. Uma carpete comprida com duas tiras vermelhas onde fazia estradas para os meus carrinhos de brincar. Aquele gira-discos velho com "cartuchos" que punha a tocar nos primeiros dias das férias de verão, como uma antecipação das festas de São Bartolomeu que chegariam no mês seguinte. As noites de verão dormidas com os meus avós no chão da sala, nas camas feitas de cobertores, improvisadas pela minha avó. A risota ao adormecer com as histórias contadas por eles. Os pequenos quartos ao cimo das escadas, onde tanta noites passei. Os vidros das janelas embaciados no inverno, ao acordar. A escrivaninha de madeira onde fazia os trabalhos de casa das férias. As camas de ferro. As cómodas de madeira. A estátua de um tigre que a minha mãe ganhou em tempos e que trazia sempre uma história de como a minha avó encheu de porrada um tipo que vinha atrás dela. As reentrâncias das janelas que foram emparedadas. As outras janelas abertas para a rua. As argolas metálicas na parede exterior onde em tempos existiram vasos. A adega antiga, mais tarde transformada em loja de arrumos, onde se almoçou, jantou, dormiu, e até um hamster que tive fugiu da gaiola e por lá se refugiou numas arcas de madeira. A porta de madeira virada para a cozinha, pintada de azul ou de castanho, com uma cunha para que se segurasse aberta. O telefone de disco preto dos TLP com o número 53202, que mais tarde seria substituído por uns quantos mais modernos que não duraram um terço do que aquele durou. Os papéis do meu avô desarrumados pelas gavetas. O quadro elétrico antigo que disparava aos primeiros sinais de trovoada. A asa protetora da minha avó por cima de mim sentado no sofá, enquanto fazia uma oração a Santa Bárbara para que a tempestade se fosse. O meu avô sentado a ler com dificuldade, por vezes com os óculos da minha avó, pequenos fascículos com histórias antigas. As conversas mais sérias e as galhofas mais divertidas de uma família inteira confinada a um espaço reduzido. As travessas de comida a entrarem na sala vindas da cozinha ao lado em dias de reunião. Os jantares à nossa espera quando chegávamos de viagem. Os almoços de despedida quando partíamos.
Sinto que se quisesse podia continuar para sempre, tal é a nitidez das memórias que vivem na minha cabeça, e que cada vez que revisito ateiam o lume da dor que hoje carrego. Outros há a quem certamente o leque de memórias será ainda menos complacente que o meu, pelo que quero acreditar que quando a dor passar, as memórias que agora parecem acendalhas se possam transformar em suaves recordações, e que a dor seja substituída pela alegria de as ter vivido e passado por elas. E quem sabe aquela casa que agora se encontra vazia de recheio mas ainda cheia de recordações, possa ainda vir a ser reerguida para albergar muitas mais, criadas nos anos vindouros. Pelo menos eu gostava que assim fosse...
3 comentários:
Ninguém como tu para exprimir o que tantos sentem... Podes não ser rico em bens materiais, mas a fortuna das memórias ninguém ta pode roubar! (pelo menos pensemos que não!) E sinto-me bem por pensar que muitas dessas memórias e vivências te foram proporcionadas por nós, teus pais.
Estamos contigo e esperamos, tal como tão bem dizes, "que quando a dor passar, as memórias que agora parecem acendalhas se possam transformar em suaves recordações, e que a dor seja substituída pela alegria de as ter vivido e passado por elas"! E,sim, "aquela casa que agora se encontra vazia de recheio mas ainda cheia de recordações, há-de ainda vir a ser reerguida para albergar muitas mais, criadas nos anos vindouros".
Façamos o "luto" e tenhamos esperança que melhores dias virão, pelo menos pelos mais pequeninos e a que temos o dever de proporcionar pelo menos parte do que nos foi concedido.
Beijinhos
Pai e Mãe.
Cristina Rito
Lindo demais Marco!!!
António Ramos
Grande abraço Marco....obrigado pela partilha deste teu universo tão privado e fantasticamente vivo como se de um conto se tratasse. Acredito que vai ser como desejas...a tua família é recheada de pessoas determinadas...:)
Jorge Martins
As paredes de uma vida ... de gerações ...
Rosa Rito
E lindo esse teu testemunho de vida Marco, que tiveste a sorte de viver e vais recordar toda essa felicidade ai vivida, vais ter tantas historias para contar aos teus filhos ao longo da vida, é tão bom ter uma família como a tua e ter sido tão feliz.
Hoje imagino a tristeza, mas vamos pensar no amanhã, para que os teus meninas, venham a ter Histórias lindas para contar no futuro. Força Marco vamos tentar ser fortes todos juntos...Um grande Abraço para todos..
Fernando RC Maria
Muito bonito MARCO. Tocante e sentido. Um bj do tio.
Santos Moreira
Gostei imenso do que li.Fiquei emocionado com estas recordações.Um grande abraço António Maria.
Isabel Rito
Muito emocionante. Todos nós temos as nossas histórias da vida que fizeram parte de nós. Eu ainda não arranjei coragem para ver a minha aldeia onde cresci e tantos km eu fiz aquele Pescanseco. Vezes sem fim que eu ia ali sem conta e sem nunca me cansar. Agora tenho um vazio dentro de mim não tenho tido coragem nem força para ver nesta altura da fase de um terrível mal que me havia de aparecer. Também não tem sido fácil para mim digerir tudo isto. Ver os meus amigos e filiares que tanto gostavam de vir ao Pescanseco e que agora têm as suas casas destruídas. Foi um inferno e só quem o viveu é que sabe avaliar e nunca mais vai esquecer , aqui na Pampilhosa e junto à minha casa também não foi fácil . Mas não podemos baixar os braços aqueles que puderem tem que se fazer alguma coisa para que a nossa aldeia vá renascer novamente. Beijinhos Marco para ti e para toda a família.
Marta Ramos
Obrigada, Marco ❤️ o maior beijo para todos aí em casa
António Antunes
Marco foi bonito o que escreveste e acredita que tudo pode ainda renascer.
Maria De Lurdes Pereira
Meu querido não tenho palavras , um grande beijinho para todos vós
Ângela Roque
Um beijo Marco, para ti e para toda a família. As nossas memórias tão nítidas... com o amor e a força que existe na vossa família vão reerguer as vossas coisas. Não pode ser de outra forma, em honra da ti Conceição e do ti Zé Custódio.
Pescanseco não será Pescanseco sem as Quintas...
João Amaral
Obrigado Marco! Nem queria acreditar quando vi as fotos 😕 certamente vocês vão reconstruir a casa e ter bons momentos de novo :-) um abraço e obrigado por esta foto estava na dúvida se era eu mas já me disseram que sim!
Rui Gonçalves
Bem haja Marco.
Uma prosa simples, mas do mais puro, que vai na alma dum viajante do tempo.
Marta De Almeida Vicente
Força, família Antunes! Tenho a certeza de que não vão ficar resignados nem de braços cruzados! Beijinhos a todos.
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